Âncora.

00:27

Estava pronta (?).

Arrumara a barco, a cesta de alimentos, a visão mais bela do fim de tarde.
Esperara o lago descongelar, a maré baixar, o Sol tocar a água.
Todos aguardavam na beira do cais: lenços brancos de despedida, olhos marejados, desejos de boa partida.

Mesmo assim, não conseguia seguir.

Que desculpa daria agora para não puxar a âncora? Porque aquele aperto insistente no peito? Porque ainda tinha esperança de descobrir algo naquela terra que já conhecia como o verso de sua mão?
Já havia tirado mais riquezas dela do que jamais esperara, já havia conquistado todos os territórios. Agora, só lhe faltava desbravar o mar. Mas porque é tão difícil assim partir? Romper laços, aceitar o que já foi feito, o que se cumpriu, se concluiu.. Partir rumo ao desconhecido?

Ela olhava pra ele, a beira do cais. Ele sorria, e isso lhe passava uma confiança única. Ele estava numa paz, numa felicidade, que não a causava inveja. Pelo contrário, também a deixava feliz.
"Vai, pequena." - Vai...
Vai, que aqui não é mais teu lar. Vai, que você não pertence a lugar algum. O mundo é o que você carrega dentro de ti, e você mal o conhece. Vai, mas não me conte mais das tuas aventuras, não é mais minha função saber.
Vai, leva o que aprendeu comigo, mas me deixe aqui.
Não me leve junto contigo, porque sou âncora. Sou a pedra que levas nos bolsos.
Vai, mas vá leve. Não repouse, não se prenda, não dê um peso maior as coisas do que o peso que elas já tem.

Vai, porque a vida não é ficar, é ir.

Puxando a corrente, que estava submersa naquele mar de memórias, via passar por seus olhos um filme: romance, drama, ficção. Via o que era antes e o que é agora. Via o amor passar pelas correntes, em sua forma mais pura, e o colocava para dentro do barco. Colocou pra dentro também suas saudades.

Até ver emergir a âncora.
Tocou aquela estrutura de ferro, fria, pesada, molhada... e chorou. Desancorar era aceitar o recomeço a partir de um fim. E isso é sempre difícil.

Sabia que precisava ser assim, mas de qualquer maneira, doía. E esse é exatamente o problema da dor: ela demanda ser sentida. Não tem como fugir, nem se poupar, nem maquilar. A única saída é deixar que infiltre suas entranhas, que penetre tua pele, que te faça sentir.

Com esforço, colocou a âncora pra dentro do barco também. Olhou com um carinho indescritível aqueles que deixara em terra firme. Olhou para ele.
Pela última vez.

Virou seu corpo na direção oposta, mirou o Sol e sorriu. E então, com a alma calma, pôde partir. Se entregou ao mar e à incerteza, sem saber o que veria depois que Sol iluminasse aquelas águas novamente pela manhã.
O singular direcionamento das águas a guiaria e ela se deixou levar...

---

"É, pode ser que a maré não vire. Pode ser do vento vir contra o cais. E se já não sinto teus sinais, pode ser da vida se acostumar. Será, morena? Sobre estar só, eu sei, nos mares por onde andei, devagar. Dedicou-se mais o acaso a se esconder. E agora, o amanhã, cadê? Doce o mar, perdeu no meu cantar..." _ L.H.




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