Meu pai e minha mãe

20:31

    Quando eu era pequena uma das coisas que mais me fazia feliz era ver meu pai chegando em casa na volta das suas inúmeras viagens com um pacote bonito nas mãos. Não tinha surpresa, era certeiro, eu já sabia o que tinha dentro: um livro. Não sabia qual era o título ou a capa, mas era livro, e isso bastava. Livros e mais livros, muitos livros. Meu pai viajava bastante. Eu tinha livro de todas as cores, espessuras e tamanhos. Uma vez, ele chegou em casa com um livro que era do meu tamanho, inclusive. Literalmente. Era sobre princesas. Eu tinha uns 4, 5 anos, e aquilo foi uma das coisas mais incríveis que eu já vi. Segundo a minha memória, ele disse que comprou quando estava parado num sinal em São Paulo, e trouxe aquele livrão no avião pra mim. Não vou nem conferir a história com ele, porque eu gosto de lembrar dela assim, imaginando meu pai segurando um livrão do tamanho de uma criança sentado naquelas poltroninhas de avião. Pena que ele era tão grande que não tinha onde guardar, então, segundo a minha memória, a gente doou pra outra criança. Não vou nem conferir a história com meus pais, porque gosto de lembrar dela assim, pensando que outra criança ficou tão feliz quanto eu ao ganhar um livrão do tamanho dela. Meu pai é bibliotecário. Sim, ele é graduado naquele curso que ninguém conhece alguém que fez, chamado Biblioteconomia. Eu conheço um cara que fez, e no caso ele é meu pai. Isso é algo bem legal de contar pras pessoas, durante aquelas conversas que normalmente a gente fica meio sem assunto, sabe? Por isso esse negócio com livros. Ele trabalhava na seção de restauração do Museu de Londrina. Imaginem. Uma vez ele levou pra casa uma versão bem antiga do Sítio do Pica Pau Amarelo, eu fiquei fascinada. Ele também me deu uma cópia de um HQ chamado de A História de O., que é erótico e foi escrito por uma mulher, numa década em que seria bem interessante eu citar mas não lembro agora, que faria você concluir que deve ter sido muito transgressor escrever uma história erótica dessas naquela época sendo mulher. Tava na sessão de descarte da Biblioteca, por ser uma obra erótica. Meu pai pegou pra ele, e depois deu pra mim. Acho que eu tinha uns 18 anos quando ganhei. É um dos meus livros preferidos, tipo xodozão mesmo. Não empresto. Meu pai é foda, né? Por essas e outras que eu virei uma criança estranhamente insuportável. Eu me apresentava pros amiguinhos do colégio falando “Oi, meu nome é Raissa, eu tenho uma biblioteca no meu quarto, já li mais de 200 livros”. Isso com uns 9 pra 10 anos de idade. Acho que é por isso que eu não fazia amigos tão fácil. Meu pai e meu irmão me zoam muito até hoje por causa dessa bendita apresentação. Uma vez eu fiz um escândalo no shopping porque eu queria ir na livraria, e meus pais estavam com pressa. Lembro de observar os outros pais olhando meus pais me puxando pelo braço enquanto eu chorava. Eu era bizarra. Culpa do meu pai. E da minha mãe. Minha mãe me buscava na escola de Biz quando eu era criança. Eu ficava em pé na parte da frente, entre ela e a moto. Naquela época não tinha que usar capacete. Eu amava voltar com ela pra casa de Biz, sentir o ventinho na cara e tudo mais. Toda vez ela perguntava “Como foi a escola?” e eu respondia “Legal”. Eu queria responder algo além de “Legal” e ela sempre me dizia que queria saber mais além do “Legal”, mas é que toda vez eu ficava pensando sobre o colégio e concluía que tinha sido “Legal” mesmo, não tinha muito o que falar. Até tinha, mas só aprendi a detalhar as coisas depois, criança é simplista. De qualquer maneira, eu gostava quando ela perguntava “Como foi a escola?”. Era o “nosso momento” depois que eu saía da aula. Ela é professora, mas na época era estudante de pedagogia, então acho que tinha uma curiosidade extra por detrás da pergunta. Minha mãe aplicava várias coisas da facul em mim, e eu adorava isso, aprendi a escrever bem cedo. Eu fui na formatura dos meus pais, inclusive. Eu vivia na Universidade, andando de bicicleta pra lá e pra cá, enquanto eles tiravam xerox e entregavam trabalhos. Meus pais viraram meus pais bem novinhos. Devia ser como brincar de boneca, eu acho. Só que a boneca era eu, eu sou de verdade, e não tem como parar de brincar quando enjoou. Foi uma época bem legal essa de brincar de casinha só que de verdade. Que bom que eu sempre tive o sono pesado, porque fui em vários shows com os meus pais. Adolescentes, né? Sabe como é... Depois de um tempo, minha mãe começou a dar aula na escola que eu estudava. Era uma escola pequena e bem família, o que permitia que eu ficasse de ajudante de sala dela às vezes. Ajudava as crianças a tirarem dúvidas, distribuía e recolhia materiais, levava uns aluninhos no banheiro Penso que hoje isso deve ser bem difícil de acontecer, a filha de uma professora ajudando ela no trabalho. Que bom que naquela época era diferente. Que bom que eu pude viver esses momentos com a minha mãe. Eu amava muito tudo isso. Ela me ensinou que professora senta no chão com o aluno se for preciso, se isso ajudar ele a entender melhor. Ela me ensinou a ter o olhar sempre atento a tudo, e que uma sucata de lixo, pode virar um jogo revolucionário. Ela me ensinou que ensinar é uma coisa muito mágica. Hoje eu quero ser professora. Minha mãe que me ensinou isso também. Minha mãe é foda, né?

    Tô longe de casa há um tempo, e ainda vou continuar mais um tempo assim. Penso que daqui pra frente, essa vida adulta vai impor cada vez mais distância, inclusive. Isso faz a gente sentir saudades, e pensar nuns negócios que a gente não pensa no dia-a-dia. Aí eu paro pra olhar as coisas agora, quem eu sou, o que eu quero ser, onde eu tô, pra onde eu quero ir, e penso em tudo que aconteceu até agora, e que continua acontecendo, e caramba, eu sou muito grata. Ser uma pessoa que gosta de ser quem é, é muito difícil. Que bom que eu tenho esses momentos pra recordar e essas pessoinhas fazendo parte de mim. Minha família é incrível. Meus pais são fodas.


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