Traços
15:45
E então, eu me apaixonei pelos teus traços.
Assim, abruptamente.
O olhar vagante decidiu se repousar no garoto que vinha do outro lado do corredor. Olhos fugidios, que traçaram seus passos pelo chão, para evitar os traços de indiferença do teu rosto. Tracei no caderno maneiras de retraçar nossos encontros, e pelo traço da tua assinatura, imaginei por onde deixara tantos preciosos rabiscos até então. Caminhei de olhar atento a qualquer movimento que me remetesse a tua presença. Tracei riscos sobre os nomes escritos na minha lista de medos, como quem acredita que agora a tentativa vingaria. E, na folha agora em branco, deixei que meus traços fossem responsáveis por criar um plano para me aproximar, para desbravar e conquistar você.
Puxando a linha calmamente consegui, de maneira singela, chegar próximo o suficiente para observar teus traços a olho nu. E me reapaixonei: pelos traços do teu rosto, pelos traços alinhados harmonicamente nos papéis, pelos traços que saíam de ti e viravam poesia, pelos traços de tua personalidade que se bordavam aos meus. Enfim, por todos os caminhos que havia traçado até me encontrar aqui, te esperando nessa esquina iluminada a meia luz.
Traçamos uma linha que se abria para o universo, mas que também nos enovelava nesse pequeno entranhamento de prazer. Teus traços - por vezes recruzados, retorcidos e reclusos - aumentavam meu fascínio. Tua incerteza de não saber onde fazer o próximo risco, me despertavam a vontade de pegar tua mão e te acompanhar desde o apontamento, até o inaugural toque do lápis na tua vida. Agradeci os traços de sangue que irrigavam teu corpo todo e o faziam ser capaz de transformar todas tuas potências em ações tão belas. O zig-zag traçado entre os dedos de nossas mãos entrelaçadas faziam os batimentos do meu coração zigzaguearem em equivalente intensidade, e nesse momento eu torci para que nossas linhas nunca se emparelhassem.
Posso afirmar: não haveria de caber em apenas uma caneta, tinta suficiente para tantos planos traçados por mim.
Até que apareceu a rasura, e a leveza dos traços foi atravessada por esse rompante de risco torto, marcado com força na mesma superfície onde eu me deliciava nessa história fictícia que construía dia-a-dia, ao gostar de você. E a letra delineada virou garrancho. As linhas traçadas em partituras, barulho. E os contornos de seu corpo, não te delimitavam mais.
O dia que seguiu foi assolado pela pior chuva em anos, e eu pude ver minhas lágrimas disputando corrida com as gotas que deixavam seus traços na janela. O degradêliciamento de apreciar todas tuas cores, se tornou então uma nuvem cinzenta que deixava fluir seus traços pausados de esquecimento sobre mim. E eu então me vi incapaz de controlar a intensidade de meus sentimentos, por não ser dona de uma racionalidade tão suposta das coisas, tão firme e tão viril.
Me perdi... Caindo em um labirinto de traços irregulares que não me levavam a lugar algum, percebi que o traçado pontilhado do mapa do tesouro, não me levou ao baú, mas me entregou aos piratas. Corri como pude até reparar que a linha traçada nas ruas não dividia mais as pistas, e eu entrei na contramão.
Traguei os traços desilusionais feitos de fumaça no ar, liberando sua entrada nos alvéolos que um dia enchi de suspiros por você. E andando meio cambaleante, entendi que aqui, o traço se bifurcava, a encruzilhada estava posta, e um novo caminho havia se aberto. Caminho este que eu não sabia até que ponto eu queria trilhatraçejar, mas que tive que encarar ao desequilibrar no delicado traço tênue dessa corda-bamba do afeto.
Assim, antes que fosse tarde, transformei o traço do meu dedo nessa superfície coberta em pó, num estímulo para me livrar de tudo aquilo que é antigo e que, mesmo imposto em minha vida, eu sei que posso apagar, assim como a borracha tira os traços que um dia desejaram ser perpetuados em papel e que hoje se mostram ruins.
O ponto final nada mais é que um traço circular contínuo sem início, nem meio, nem fim.
E eu decidi colocar um ponto circufinito no efeito dos teus traços sobre mim.
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